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A reação democrática

3 de julho de 2020 - JOSÉ ROBERTO BATOCHIO

“A toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade: as ações mútuas de dois corpos um sobre o outro são sempre iguais e dirigidas em sentidos opostos.”

Isaac Newton, Princípios Matemáticos da Filosofia Natural.

 

Logo depois de se graduar em Cambridge, em 1665, Newton teve de se recolher à sua amada aldeia de Woolsthorpe para fugir de uma devastadora epidemia e, nesse isolamento semelhante ao que hoje vivenciamos, o maior cientista de todos os tempos concebeu muitas ideias que revolucionaram a Ciência – entre elas a formulação da mais conhecida lei física, qual seja, a do princípio da ação e reação. Consagrada no universo científico, a lei se popularizou e encontrou habitat perfeito na Ciência Política, pois ilustra as ações humanas, das relações pessoais do cotidiano às revoluções sociais, sempre apontando para o novo contra o obsoleto, o bem contra o mal, a liberdade contra a opressão e, no caso que focalizamos no momento, a Democracia contra o autoritarismo.

Em artigo recente em O Estado de S. Paulo (A democracia convoca seus defensores, https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,a-democracia-convoca-seus-defensores,70003339258), observei, sem citá-lo diretamente, que esse princípio newtoniano aplicado à política oxigenou a inovadora Declaração de Independência dos Estados Unidos em 1776. O documento exorta à reação ao afirmar que na vigência de uma forma de governo abusiva e usurpadora dos princípios da ordem e da liberdade, in extremis “cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo”.

Fiel à sua rigorosa e histórica trajetória de bastião democrático, a Ordem dos Advogados do Brasil acende a tocha da reação com a campanha “#OABPelaDemocracia”. É que passa da hora de os verdadeiramente democratas se lançarem com destemor na defesa do Estado Democrático de Direito que vem sendo erodido, à moda contemporânea - sem tanques nem atos institucionais -, por um governo que, valendo-se dos princípios democráticos para se eleger, agora os degenera para se manter e acumular mais poderes do que aqueles legitimamente definidos e limitados pela Constituição. A reação consiste em protegê-la, a todo custo, como a carta de navegação que permite à nave soberana do Brasil singrar pelos mares às vezes revoltos do regime democrático.   

Não há, pois, o que esperar senão a reação legítima dos autênticos democratas, pois soada a hora de os advogados se engajarem como vanguarda nessa cruzada pela Democracia – resgatando o senso de oportunidade do guerreiro no poema épico I-Juca Pirama de Gonçalves Dias:

 

“E a caminho, e já!"

– `Tardaste muito!

Não era nado o sol, quando partiste,

E frouxo o seu calor já sinto agora!"

– “Sim, demorei-me a divagar sem rumo,

Perdi-me nestas matas intrincas,

Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo;

Convém partir, e já!"

__ “Que novos moles

Nos resta de sofrer?

 

Faz-se urgente conter o mal antes que se expanda. Estamos na confortável posição de ecoar a voz do povo, pois o dinamismo da reação mostra que quando a Democracia é sitiada, agiganta-se sua defesa no corpo social. É o que demonstra a recente pesquisa do Datafolha, ao revelar que o apoio reativo à Democracia está a aumentar precisamente quando a ação degenerativa autoritária mais se insinua no cenário político. Se na penúltima pesquisa, realizada em dezembro de 2019, 62% dos entrevistados aprovavam a Democracia e apenas 12% a ditadura, a última, neste mês de junho de 2020, mostrou uma elevação do apoio democrata para 75% – contra meros 10% dos que preferem o a tirania, regime das trevas. O patamar alcançado hoje é o maior da série histórica iniciada em 1989.

Com a resiliência que é lhe inerente, o espírito democrático eleva-se em repulsa majoritária e cristalina às propostas correntes no governo e entre seus apoiadores (30% dos eleitores) para intimidar o Poder Judiciário no exercício constitucional de barrar atos ilegais de improbidade administrativa ou compelir o Executivo a cumprir o papel de gerenciar o bem comum para o qual seus atuais ocupantes foram eleitos. Incluem-se nessa rejeição cívica os apelos pela volta do regime dos atos institucionais, ataques aos demais poderes da República, opacidade dos atos administrativos mediante a violação da transparência do governo, assim como um triunfo da plataforma obscurantista e repressiva que anima certas autoridades à frente de órgãos estatais.

Tal panorama abrange as tentativas recorrentes de deformar o ordenamento jurídico democrático com medidas provisórias que comprometem as liberdades, o Estado de Direito, atos que confrontam a probidade da Administração, desprezam o conhecimento, em especial o científico,  estimulam os que negam as leis e buscam soluções de força e pregam ou praticam a violência cotidiana, a exemplo do aumento do abuso policial nas ruas que se sente referendado de cima, na mesma proporção em que a governança abdica ou malversa seu papel de conduzir o Estado para iniciativas de interesse público, a exemplo de prover a sociedade dos serviços de saúde tão essenciais em um período de letal pandemia que ora atravessamos, quando a crise econômica dela consequente afeta os mais fracos e vulneráveis em cujo socorro o Estado tem sido vacilante e avaro.

A veia que jorra autoritarismo é pródiga no uso da Lei de Segurança Nacional, resíduo do entulho ditatorial que a redemocratização não removeu, para intimidar adversários e jornalistas, valendo-se dos dispositivos abusivos de penas mais altas que as do Código Penal, instituídas pela ditadura para proteger os generais-presidentes das críticas da oposição. Em inversa e incoerente direção, não hesitam em valer-se da calúnia, difamação e injúria, açulando e açuladas por suas milícias digitais, território pantanoso onde os crimes contra a honra e os linchamentos morais são livres e tentam se disfarçar de liberdade de expressão.

Não se trata de uma linha política a ancorar uma plataforma de governo, o que seria legítimo, mas um atentado à história de lutas e conquistas do povo brasileiro, consolidadas na Constituição Cidadã que submeteu a condução do Estado aos interesses da Nação, ou seja, da sociedade civil, estabelecendo já no Art. 1.º que a República tem entre seus fundamentos a cidadania  e a dignidade da pessoa humana, e no Art. 5.º elenca direitos e garantias fundamentais que parecem caminhar para ser letra morta.

 A própria existência e atribuições da OAB têm sido questionadas, objetando-se até a necessidade de seu exame de habilitação dos futuros profissionais da Advocacia – despautério que nos remete à reação de nosso patrono Rui Barbosa. Em oração no Supremo Tribunal Federal, em 23 de abril de 1892, o grande Rui, inspiração e norte para esses momentos em que tanto se evoca a espada, que ele chamou de “parenta próxima da tirania”, citou um episódio da história da França em 1810, quando o cônsul Cambacérès sugeriu a Napoleão a reconstituição da ordem dos advogados extinta pela Revolução, e o imperador esbravejou: “Enquanto eu trouxer ao lado esta espada, nunca assinarei tal decreto. Quero que se possa cortar a língua ao advogado, que a utilize contra os interesses do governo” – intimidação que levou Rui a indagar: “Andará entre nós a alma dos Napoleões? Terá ela encarnado na legião dos nossos Césares, contrafeitos sob o manto republicano?”

A reação democrática saberá, sob liderança dos advogados, exorcizar os espectros autoritários dos nossos Césares tropicais.

Autor(es):

Curriculum:

Presidente do Conselho Federal da OAB de 1/4/1993 a 1/4/1995.


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