Conferência: Ophir cobra ações concretas em prol dos direitos humanos
Vitória (ES) – Ao instalar hoje (15) a V Conferência Internacional de Direitos Humanos, durante solenidade no Centro de Convenções de Vitória (ES), o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil afirmou que o evento pretende contribuir para o questionamento crítico a respeito das políticas públicas que vêm sendo adotadas nessa área, visando a dar concretude aos preceitos da Constituição de 1988 no que se refere à promoção dos direitos da pessoa humana. “É hora de nos empenharmos na defesa da efetividade desses direitos; em outras palavras, precisamos pressionar o Estado”, disse ele a uma plateia atenta.
No discurso de abertura da Conferência, o presidente nacional da OAB lembrou que a “Constituição Cidadã” veio para romper com os resquícios do período de autoritarismo. Nesse sentido, cobrou do governo ações concretas no campo dos direitos humanos para se alcançar essa premissa. Citando Dom Helder Câmara, a quem chamou de uma das figuras mais emblemáticas na luta pelos direitos humanos, Ophir defendeu “o diálogo para sair do atraso, atraso que ameaça fazer de nossa Constituição folhas avulsas levadas pelos ventos de uma utopia que teima em não se realizar”
“Preocupa-nos - e preocupa-nos muito – não apenas a exposição de nosso país em fóruns internacionais quando são apresentados relatórios sobre a situação de segmentos sociais expostos ao arbítrio, ao descaso e à inépcia do Estado”, sustentou ele.
Ophir Cavalcante destacou, ainda, que o Brasil tem avançado tanto no campo da democracia quanto na economia, consolidando uma nova e emergente classe média. Mas ressalvou que a contribuição do Estado no que se refere às garantias e direitos universais não tem correspondido a esses avanços. Ele disse que a sociedade civil, com decisiva participação da OAB, se empenhou para aprovação de medidas como a Lei Maria da Penha e para um novo arcabouço legal em reforço ao princípio da igualdade ente gêneros, e para legislações de avanço na ordem social e contra o racismo.
“A OAB fez sua parte, mas não deseja, nem deve, ficar de braços cruzados esperando que o Estado faça também a sua”, afirmou o presidente nacional da OAB, criticando ainda o aumento da violência policial, como nos casos da Cracolândia e de Pinheirinho, ambos em São Paulo; e atacou o “caos das cadeias e penitenciárias”, que tem um dos exemplos mais dramáticos nas prisões contêineres do Espírito Santo.
Veja a íntegra do pronunciamento do presidente nacional da OAB na abertura da V Conferência Internacional de Direitos Humanos:
Senhoras e Senhores,
De todos os temas que dizem respeito à relação entre as pessoas, nenhum é mais candente para a Ordem dos Advogados do Brasil do que os direitos humanos. Liberdade é direito humano; saúde, também é direito humano; O que dizer, então, de trabalho e emprego? Sem prover o sustento de si própria e da família, a pessoa vê aniquilada a sua dignidade. Educação, igualmente, é direito humano, e seu acesso deve ser universal, pois enquanto houver oportunidades, reinará a tranquilidade.
Tudo gira em torno de um conceito filosófico que moldou a nossa civilização: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.
Hoje em dia, enfrentamos a questão dos direitos humanos com muito mais clarividência, mas sendo ainda o Brasil — e não sabemos por quanto tempo mais — um país de carências e contrastes, é nosso dever estimular discussões como esta. A V Conferência Internacional de Direitos Humanos traz um painel realista do país 24 anos depois de se adotar como fundamentos da Constituição da República a dignidade da pessoa humana, a cidadania, a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais; e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, idade e cor.
Informação também é um direito humano, e aqui teremos, com certeza, muito a discutir no âmbito da Lei de Acesso à Informação e suas implicações na recém-criada Comissão da Verdade. Não podemos vislumbrar nenhuma situação em que o acesso a um documento, ainda que esteja ele cercado de todo o sigilo, seja vedado para esclarecer casos de graves violações à condição humana.
Sem as amarras que no passado transformavam em hereges os defensores dos direitos humanos, é hora de levarmos avante os questionamentos necessários a respeito das políticas públicas que vêm sendo adotadas nessa área. Questionamentos e críticas. Preocupa-nos — e preocupa-nos muito — não apenas a exposição de nosso país quando são apresentados relatórios sobre a situação de segmentos sociais expostos ao arbítrio, ao descaso e à inépcia do Estado.
Preocupa-nos muito mais a realidade dos fatos, que conhecemos muito bem. Daí porque uma autoridade internacional chegou a dizer que o Brasil se parece com um gigante com pés de barro.
Pois, se de um lado devemos reconhecer a importância da Lei Maria da Penha (apenas para citar um exemplo), de outro nos deixam perplexos as denúncias de violência doméstica que continuam a chegar envolvendo mulheres e também crianças. A revelar que a lei só não basta enquanto tivermos na raiz do problema o alcoolismo, o vício nas drogas, e, igualmente grave, o drama da pobreza e da baixa escolaridade.
A Ordem dos Advogados do Brasil se empenhou com todo o seu peso para garantir a Lei Maria da Penha. Da mesma forma, contribuiu para a montagem do arcabouço legal que nos últimos anos reforçou o princípio da igualdade entre os gêneros, permitiu a aplicação de novos instrumentos para defesa dos direitos, tornou o racismo crime imprescritível e deu ao consumidor mecanismos de proteção, dentro outros avanços no título da ordem social, contemplando idosos, crianças e adolescentes, além das minorias étnicas.
A OAB fez a sua parte, usando o Direito como ferramenta a serviço de todos, e não como instrumento para perpetuar privilégios e desigualdades. Respeitando e valorizando as diferenças culturais, religiosas, sexuais, culturais e políticas. Mas não deseja, nem deve, ficar de braços cruzados esperando que o Estado, sozinho, se mobilize.
Além disso, Estado brasileiro não pode se confundir com a vontade do governante. O governante é transitório, e não sendo surpresa que, ao analisar a questão pelo ângulo custo-benefício, ache inviável atender o que diz a Constituição. Temos exemplos concretos. É assim que o governante age para não pagar os precatórios devidos aos cidadãos brasileiros, violando todos os princípios legais e a matéria julgada. É importante dizer: precatórios também constituem um direito humano.
Por esta razão, a OAB ingressou como amicus curiae na ação interposta junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos, na qual o Brasil figura como réu por descumprimento de ordem judicial para pagamento de precatórios.
Este é outro tema da maior importância e sobre o qual o Judiciário brasileiro terá de se posicionar. Estou me referindo aos tratados internacionais. Se estes tratados são de origem comercial, resta sempre a ameaça de que, se uma das partes desobedecer, podem sofrer retaliações pesadas.
Porém, se o assunto diz respeito aos direitos humanos, a coisa muda de figura. O que poderia ser o equivalente a uma sanção comercial, um embargo ou coisa parecida, vira, quando muito, mera “advertência”, sob a alegação de se estar ferindo a soberania deste ou daquele Estado.
Soberania, a nosso ver, significa cumprir a Constituição e respeitar os tratados subscritos por uma Nação em nome de seu povo. Significa, ainda, o Judiciário se impor como guardião do ordenamento jurídico e evitar ingerências de outros poderes, ou, melhor, da vontade dos governantes para deliberar conforme as conveniências. A dignidade da pessoa humana deve ser a baliza do Judiciário para que o Direito seja aplicado dentro do espírito de nossa Carta Magna.
Nunca o Brasil experimentou, em toda a sua história, um período tão longo e profícuo de experiência democrática. Poucas vezes nos damos conta disso. Da mesma forma, nunca em toda a história foi dispensado aos direitos humanos um tratamento jurídico como agora, como resultado da vontade da sociedade após duas décadas de ditadura militar.
É no mínimo lamentável que estejamos, a esta altura, ainda correndo atrás do tempo perdido.
No começo deste ano, pareceu aos olhos da mídia um tanto absurdo quando o advogado Luiz Henrique Fernandes Santana, na cidade de Lavras, interior e Minas, pediu um habeas corpus coletivo para todos os detentos da cadeia pública. Nada havia de absurdo, a não ser a situação da cadeia, originalmente construída para abrigar 51 detentos mas que tinha, naquele momento, nada menos do que 248 presos.
Ainda está vivo na memória o caos registrado nas cadeias e penitenciárias no Espírito Santo, quando uma comissão especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana denunciou o presídio em que os presos eram amontoados em contêineres. O massacre do Carandiru, de 1992, continua sendo considerada nos anais da violência carcerária a maior violação dos direitos humanos na história recente do país, com 111 detentos assassinados.
Estupro na prisão e espancamentos por agentes penitenciários não são um fato isolado. O caso de uma adolescente estuprada por homens numa cela, ocorrido no final de 2007 em uma delegacia do município de Abaetetuba, no estado do Pará, trouxe à tona essa realidade da pior forma. Muitas crianças, por sua vez, estão expostas à condição de marginalidade nas vias públicas, sendo vítimas fáceis de drogas baratas, como o crack, e da prostituição infantil. A violação mais notória a esse vulnerável grupo foi o massacre da Candelária, em 1993.
A violência policial é outra face do problema. Algumas polícias usam sistematicamente de práticas abusivas, sendo a tortura a mais frequente. Trata-se de um fenômeno que não é novo, mas que se exacerba nos dias atuais: é “criminalização da pobreza” nos centros urbanos, em que se destacam os casos de violência policial registrados na Cracolândia e em Pinheirinho, São Paulo.
A Carta de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”, veio para romper com os resquícios autoritários do passado. Para continuarmos acreditando nesta premissa, precisamos de ações concretas.
É hora de nos empenharmos na defesa da efetividade desses direitos; em outras palavras, precisamos pressionar o Estado. É hora de trazermos a memória de Dom Hélder Câmara, uma das figuras mais emblemáticas na luta pelos direitos humanos. “Eu tenho fome e sede de paz”, disse ele. “Dessa paz do Cristo que se apoia na Justiça. Eu tenho fome e sede de diálogo”.
Não posso deixar de registrar que Dom Helder, ao lado de Dom João Batista da Mota Albuquerque, arcebispo de Vitória até 1984, quando faleceu, foram religiosos de vanguarda na defesa dos direitos humanos, dando início aos trabalhos das comunidades eclesiais de base e contribuindo para a criação da Comissão Justiça e Paz.
Precisamos desse diálogo a que se referiu Dom Helder para sair do atraso, o atraso que ameaça fazer de nossa Constituição folhas avulsas levadas pelos ventos de uma utopia que teima em não se realizar. Se não há futuro sem direitos, como imaginar um futuro sem direitos humanos?
Temos uma longa caminhada ainda pela frente, mas temos também a convicção e a persistência, além da inquebrantável fé no seu propósito. Como diria, mais uma vez, o vigário da paz:
“É graça divina começar bem. É graça maior persistir na caminhada certa. Mas é graça das graças não desistir nunca”.
Muito obrigado.